Mário Lange de S. Thiago
“... dá com
sabedoria. Não repilas o que se queixa, com receio de que te engane; vai às
origens do mal. Alivia, primeiro; em seguida, informa-te e vê se o trabalho, os
conselhos, mesmo a afeição não serão mais eficazes do que a tua esmola.”
(Cheverus, in O Evangelho Segundo o Espiritismo, FEB, 62ª ed., p.274).
O nosso Mário Barbosa (1936-1990) costumava
dizer que o serviço assistencial espírita consiste em evangelizar grupos
particulares, entendendo-o como a construção dos sentimentos. Seguramente,
devemos ao Mário a melhor reflexão em torno dessas questões assistenciais no
movimento espírita. A reflexão sem prática leva à estagnação. Mas, a prática
sem reflexão (não sei o que seria pior) leva ao erro, à repetição do erro, às
falsas condutas, ao farisaísmo, ao dogmatismo, à superação metodológica. No
campo deste artigo, penso que a ausência de reflexão resulta em
assistencialismo.
Para o movimento espírita, aliás,
sempre foi muito importante a área social. Faz parte da história do Espiritismo
no Brasil o desenvolvimento de ações sociais, que o tornaram respeitado e
permitiram o seu avanço no entendimento das pessoas. Atualmente, procura-se
resgatar Kardec para o serviço assistencial espírita. O exame crítico do passado
revela um primeiro momento assistencialista, sob a moldura das obras de grande
porte, difíceis de administrar. Um segundo momento, coincidente com o
aparecimento das escolas de serviço social, é tecnicista, com os seus fichários
e entrevistas, resultando em progresso, posto que os tempos eram outros (saindo
do peixe dado, para o aprender a pescar). Em realidade, o serviço assistencial
espírita observava atento a expansão da miséria material em nosso país, nada
parecido com uma pobreza quase romântica do primeiro momento.
Mas, a prática assistencial espírita
estava dividida pelos aspectos material e espiritual. Não há fronteiras para o
serviço assistencial espírita, cujos fundamentos se agitam no processo de
construção dos sentimentos, sejam daquele que presta assistência, como do que é
pretensamente assistido. Essa relação carece de horizontalidade, para ser
eficaz, eficiente e efetiva em termos evangélicos. O que o serviço assistencial
espírita propõe é a disseminação de uma nova mentalidade, em que as
necessidades e os valores do ser, como a auto-estima e a auto-realização,
fecundem a consciência paradigmaticamente renovadora do pertencer ou saber-se
participante.
Simplificadamente, o serviço
assistencial espírita tem-se resolvido na ação assistencialista, improdutiva
sob diversos aspectos. Dar coisas (quase sempre úteis, é verdade) não pode e
não deve ser o resumo dessa atividade verdadeiramente iniciática do Centro
Espírita. A essência da caridade não repousa no dar (v. conceito de caridade na
1ª Epístola de Paulo aos Coríntios, cap. XIII, vv. 1 a 7 e Questão 886, de O
Livro dos Espíritos). A caridade, que necessariamente se expressa no mundo das
relações, é processo de transformação interior, pela substituição gradual do
egoísmo. Decorre da expansão da consciência, pela compreensão vivenciada das
realidades espirituais que a todos é facultada, independente de posses
materiais.
Entre os espíritas não há, portanto,
a opção pelos pobres, como síntese programática. Em países como o Brasil, a
miséria é um alvo importante, mas não define os objetivos de uma doutrina
social espírita, cuja proposta é bem mais abrangente, podendo até, passar pela
opção (desde que útil) da pobreza pessoal. O que melhor se estima nesse
processo são os valores da convivência, plena de significação existencial. O
serviço assistencial no Centro Espírita é, pois, escola de renovação mental,
buril que prepara para os relacionamentos normais da vida ativa de cada
um.
Se ao Mário devemos o conceito
convivencial do serviço assistencial espírita, dois passos adiante da
assistência e do serviço social, e que deles não prescinde, foi com o Edvaldo
Roberto de Oliveira que compreendemos evangelicamente sua metodologia de ação. Em
Lucas 10.25-37, a parábola do Samaritano está impregnada de um roteiro pleno de
significações eso-exotéricas que nos permitem bem avaliar procedimentos
históricos e aprender sobre a relação de convivência consciente. Quem fala
inicialmente, para provocar, é um experto em leis: que devo fazer para herdar a
vida eterna (vida imanente, na tradução de Pastorino)? Jesus não responde,
vale-se, senão da maiêutica, mas da especialização do interlocutor,
permitindo-lhe definir: que lês na lei? E, pela primeira vez no Evangelho, se
anuncia a regra áurea, segundo a qual deve-se amar a Deus sobre todas as coisas
e ao próximo como a si mesmo, mais tarde confirmada em Mateus 22.34-40 e Marcos
12.28-34: nestes dois preceitos estão resumidos toda a lei e os profetas. Por
isso, diz o Mestre ao Doutor interpelante: faze isso e viverás. Então, como se
vê, no meio intelectual judeu o preceito já era conhecido. E, como é comum em
ambientes de mero conhecimento (acadêmico), o especialista precisou
justificar-se: e quem é meu próximo? Foi o que bastou para que Jesus enunciasse
o modo espontâneo de praticar com pureza a lei do amor, fundamento da vida
social. Fê-lo através de uma estória singular, sem perda da história plural,
dizendo: certo homem descia de Jerusalém a Jericó e caiu entre ladrões que,
tendo-o não só despido como batido até chagá-lo, foram embora deixando-o meio
morto. Valer-nos- emos das explicações de Carlos Torres Pastorino, para
entendermos melhor. Jerusalém, que as palavras hebraicas têm significado
simbólico, quer dizer visão da paz, estar purificado. Jericó significa a lua
dele, estar sujeito a variações vibratórias. Assim, o espírito se pôs no mundo,
baixando suas vibrações, encontrando-se com ladrões de sua paz (sensações) e
salteadores de sua espiritualidade (emoções). Ver isso na parábola é
importante, porque aponta mais além do corpo físico, permitindo-nos perceber o
ensinamento também no plano mais elevado e iniciático da renovação mental. É
significativa essa simultaneidade da visão. O fato é que temos diante de nós um
espírito reencarnado, um homem em dificuldades, a quem é devido atender. Como
sabemos, desciam também pelo mesmo caminho, um após o outro, um sacerdote, um
levita e, por fim, um samaritano, este odiado pelos judeus, e não incluído na
relação dos que se enquadravam na expressão próximo. O primeiro representa as
religiões organizadas, enquanto o segundo os amigos (aliados, auxiliares no
templo). Estimulados pelas reclamações evidentes, suas reações são patéticas:
uns utilizam a voz e não as mãos, enquanto os companheiros também nada podem
quanto aos problemas profundos. A relação afetiva real depende de quem esteja
tocado de espiritualidade. Na linguagem hebraica, samaritano é o vigilante,
alguém com a consciência desperta. E o que basta. Relembre-se que os
samaritanos eram desprezados pelos judeus, que os equiparavam aos pagãos, e
isso Jesus precisava denunciar ao sacerdote que o questionava, para ampliar-lhe
a percepção do ser. Mas o essencial era ensinar o método para dar-se
cumprimento à lei judaica, assim enunciada e aceita.
Edvaldo assinala os passos: 1.
observar; 2. aproximar-se; 3. utilizar os recursos disponíveis; 4. acompanhar;
5. tomar-se responsável pelo outro. Decerto o samaritano vinha montado no
jumento, como era hábito. Vendo o quadro de dificuldades, teve compaixão,
provando a sua disponibilidade. Então, aproximou-se, tendo que descer do
jumento, pondo-se no mesmo nível, e aí, enfaixou-lhe as feridas, derramando
sobre elas azeite e vinho, costume da época, que eram os recursos existentes.
Na linguagem iniciática (mais elevada), o azeite representa bálsamo de conforto
e consolação, e o vinho a interpretação e explicações espirituais. Mas, isto
tudo ainda não é o suficiente. Põe-no sobre o jumento e leva-o a uma
hospedaria, que é o lugar onde poderá refazer-se ou libertar-se pela meditação
ao lado de um mestre (hospedeiro), fazendo-se seu fiador. E só então o deixará,
quando estiver refeito e puder caminhar por seus próprios pés. Será, pois,
fundamental o esclarecimento, para que as responsabilidades existenciais não
sejam transferidas. Assim nos parece o serviço assistencial espírita. Uma
atividade com os recursos proporcionais aos seus objetivos, mas que sempre
poderá fundar-se no crescimento espiritual dos seus adeptos.
É bom que se previna: o essencial no
modelo espírita é a renovação mental. Não importa de que atividade se trate,
seja o serviço assistencial, a mediunidade, o estudo científico, a expressão
literária, o que for, o interesse mais significativo repousa no desenvolvimento
do ser, assinalado pelo desinteresse pessoal, conforme a questão 895, de O
Livro dos Espíritos.
Este artigo foi
publicado na Revista Harmonia