sábado, 22 de março de 2014

Serviço Assistencial Espírita

 Mário Lange de S. Thiago

“... dá com sabedoria. Não repilas o que se queixa, com receio de que te engane; vai às origens do mal. Alivia, primeiro; em seguida, informa-te e vê se o trabalho, os conselhos, mesmo a afeição não serão mais eficazes do que a tua esmola.” (Cheverus, in O Evangelho Segundo o Espiritismo, FEB, 62ª ed., p.274).

            O nosso Mário Barbosa (1936-1990) costumava dizer que o serviço assistencial espírita consiste em evangelizar grupos particulares, entendendo-o como a construção dos sentimentos. Seguramente, devemos ao Mário a melhor reflexão em torno dessas questões assistenciais no movimento espírita. A reflexão sem prática leva à estagnação. Mas, a prática sem reflexão (não sei o que seria pior) leva ao erro, à repetição do erro, às falsas condutas, ao farisaísmo, ao dogmatismo, à superação metodológica. No campo deste artigo, penso que a ausência de reflexão resulta em assistencialismo.
            Para o movimento espírita, aliás, sempre foi muito importante a área social. Faz parte da história do Espiritismo no Brasil o desenvolvimento de ações sociais, que o tornaram respeitado e permitiram o seu avanço no entendimento das pessoas. Atualmente, procura-se resgatar Kardec para o serviço assistencial espírita. O exame crítico do passado revela um primeiro momento assistencialista, sob a moldura das obras de grande porte, difíceis de administrar. Um segundo momento, coincidente com o aparecimento das escolas de serviço social, é tecnicista, com os seus fichários e entrevistas, resultando em progresso, posto que os tempos eram outros (saindo do peixe dado, para o aprender a pescar). Em realidade, o serviço assistencial espírita observava atento a expansão da miséria material em nosso país, nada parecido com uma pobreza quase romântica do primeiro momento.
            Mas, a prática assistencial espírita estava dividida pelos aspectos material e espiritual. Não há fronteiras para o serviço assistencial espírita, cujos fundamentos se agitam no processo de construção dos sentimentos, sejam daquele que presta assistência, como do que é pretensamente assistido. Essa relação carece de horizontalidade, para ser eficaz, eficiente e efetiva em termos evangélicos. O que o serviço assistencial espírita propõe é a disseminação de uma nova mentalidade, em que as necessidades e os valores do ser, como a auto-estima e a auto-realização, fecundem a consciência paradigmaticamente renovadora do pertencer ou saber-se participante.
            Simplificadamente, o serviço assistencial espírita tem-se resolvido na ação assistencialista, improdutiva sob diversos aspectos. Dar coisas (quase sempre úteis, é verdade) não pode e não deve ser o resumo dessa atividade verdadeiramente iniciática do Centro Espírita. A essência da caridade não repousa no dar (v. conceito de caridade na 1ª Epístola de Paulo aos Coríntios, cap. XIII, vv. 1 a 7 e Questão 886, de O Livro dos Espíritos). A caridade, que necessariamente se expressa no mundo das relações, é processo de transformação interior, pela substituição gradual do egoísmo. Decorre da expansão da consciência, pela compreensão vivenciada das realidades espirituais que a todos é facultada, independente de posses materiais.
            Entre os espíritas não há, portanto, a opção pelos pobres, como síntese programática. Em países como o Brasil, a miséria é um alvo importante, mas não define os objetivos de uma doutrina social espírita, cuja proposta é bem mais abrangente, podendo até, passar pela opção (desde que útil) da pobreza pessoal. O que melhor se estima nesse processo são os valores da convivência, plena de significação existencial. O serviço assistencial no Centro Espírita é, pois, escola de renovação mental, buril que prepara para os relacionamentos normais da vida ativa de cada um.
            Se ao Mário devemos o conceito convivencial do serviço assistencial espírita, dois passos adiante da assistência e do serviço social, e que deles não prescinde, foi com o Edvaldo Roberto de Oliveira que compreendemos evangelicamente sua metodologia de ação. Em Lucas 10.25-37, a parábola do Samaritano está impregnada de um roteiro pleno de significações eso-exotéricas que nos permitem bem avaliar procedimentos históricos e aprender sobre a relação de convivência consciente. Quem fala inicialmente, para provocar, é um experto em leis: que devo fazer para herdar a vida eterna (vida imanente, na tradução de Pastorino)? Jesus não responde, vale-se, senão da maiêutica, mas da especialização do interlocutor, permitindo-lhe definir: que lês na lei? E, pela primeira vez no Evangelho, se anuncia a regra áurea, segundo a qual deve-se amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, mais tarde confirmada em Mateus 22.34-40 e Marcos 12.28-34: nestes dois preceitos estão resumidos toda a lei e os profetas. Por isso, diz o Mestre ao Doutor interpelante: faze isso e viverás. Então, como se vê, no meio intelectual judeu o preceito já era conhecido. E, como é comum em ambientes de mero conhecimento (acadêmico), o especialista precisou justificar-se: e quem é meu próximo? Foi o que bastou para que Jesus enunciasse o modo espontâneo de praticar com pureza a lei do amor, fundamento da vida social. Fê-lo através de uma estória singular, sem perda da história plural, dizendo: certo homem descia de Jerusalém a Jericó e caiu entre ladrões que, tendo-o não só despido como batido até chagá-lo, foram embora deixando-o meio morto. Valer-nos- emos das explicações de Carlos Torres Pastorino, para entendermos melhor. Jerusalém, que as palavras hebraicas têm significado simbólico, quer dizer visão da paz, estar purificado. Jericó significa a lua dele, estar sujeito a variações vibratórias. Assim, o espírito se pôs no mundo, baixando suas vibrações, encontrando-se com ladrões de sua paz (sensações) e salteadores de sua espiritualidade (emoções). Ver isso na parábola é importante, porque aponta mais além do corpo físico, permitindo-nos perceber o ensinamento também no plano mais elevado e iniciático da renovação mental. É significativa essa simultaneidade da visão. O fato é que temos diante de nós um espírito reencarnado, um homem em dificuldades, a quem é devido atender. Como sabemos, desciam também pelo mesmo caminho, um após o outro, um sacerdote, um levita e, por fim, um samaritano, este odiado pelos judeus, e não incluído na relação dos que se enquadravam na expressão próximo. O primeiro representa as religiões organizadas, enquanto o segundo os amigos (aliados, auxiliares no templo). Estimulados pelas reclamações evidentes, suas reações são patéticas: uns utilizam a voz e não as mãos, enquanto os companheiros também nada podem quanto aos problemas profundos. A relação afetiva real depende de quem esteja tocado de espiritualidade. Na linguagem hebraica, samaritano é o vigilante, alguém com a consciência desperta. E o que basta. Relembre-se que os samaritanos eram desprezados pelos judeus, que os equiparavam aos pagãos, e isso Jesus precisava denunciar ao sacerdote que o questionava, para ampliar-lhe a percepção do ser. Mas o essencial era ensinar o método para dar-se cumprimento à lei judaica, assim enunciada e aceita.
            Edvaldo assinala os passos: 1. observar; 2. aproximar-se; 3. utilizar os recursos disponíveis; 4. acompanhar; 5. tomar-se responsável pelo outro. Decerto o samaritano vinha montado no jumento, como era hábito. Vendo o quadro de dificuldades, teve compaixão, provando a sua disponibilidade. Então, aproximou-se, tendo que descer do jumento, pondo-se no mesmo nível, e aí, enfaixou-lhe as feridas, derramando sobre elas azeite e vinho, costume da época, que eram os recursos existentes. Na linguagem iniciática (mais elevada), o azeite representa bálsamo de conforto e consolação, e o vinho a interpretação e explicações espirituais. Mas, isto tudo ainda não é o suficiente. Põe-no sobre o jumento e leva-o a uma hospedaria, que é o lugar onde poderá refazer-se ou libertar-se pela meditação ao lado de um mestre (hospedeiro), fazendo-se seu fiador. E só então o deixará, quando estiver refeito e puder caminhar por seus próprios pés. Será, pois, fundamental o esclarecimento, para que as responsabilidades existenciais não sejam transferidas. Assim nos parece o serviço assistencial espírita. Uma atividade com os recursos proporcionais aos seus objetivos, mas que sempre poderá fundar-se no crescimento espiritual dos seus adeptos.
            É bom que se previna: o essencial no modelo espírita é a renovação mental. Não importa de que atividade se trate, seja o serviço assistencial, a mediunidade, o estudo científico, a expressão literária, o que for, o interesse mais significativo repousa no desenvolvimento do ser, assinalado pelo desinteresse pessoal, conforme a questão 895, de O Livro dos Espíritos.



Este artigo foi publicado na Revista Harmonia

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