Segundo o codificador Allan Kardec, toda a moral de Jesus se resume na caridade e na humildade. A caridade se opõe ao egoísmo, enquanto a humildade se opõe ao orgulho. Esses dois – o egoísmo e o orgulho – segundo Kardec, são as maiores fontes de todos os outros males da humanidade (ver capítulo XV – “Fora da Caridade não há Salvação” de “O Evangelho segundo o Espiritismo”). Em todos os ensinamentos de Jesus, a caridade e a humildade são exemplificadas pelo seu próprio comportamento, como condições indispensáveis para a absoluta felicidade futura. E de fato, se observarmos com muito cuidado, nossos atos de amor quando são manifestados do fundo de nossos corações, factualmente nos tornam mais felizes.
Ao falar da “Caridade da Vida Cotidiana”, que é o título desse artigo, o meu objetivo não é discorrer, por exemplo, sobre a caridade que consiste no ato de oferecer uma “esmola” aos mais necessitados – embora essa seja também importante – mas sim, sobre um tipo de caridade que talvez seja mais difícil, pois para ser expresso deve fazer parte mesmo das menores atitudes de nosso dia-a-dia: trata-se do respeito nas relações
humanas.
Segundo o Espírito Albert Camus (no livro “Pensamentos sobre o Ser” psicografado pela médium Nora T. M. N. Sakamoto) respeitar implica em não agredir (seja física ou verbalmente), e além disso, saber aceitar cada pessoa com suas manias, idéias, propósitos e atos. Implica em acatar o comportamento do outro e em compreendê-lo; algumas vezes renunciar às vontades próprias no respeito-amor, bem como o perdão automático no respeito-cristão. O autor espiritual salienta que respeito não significa submissão, passividade ou ausência de pensamento próprio, mas a nobreza de permitir que as criaturas tracem seus valores e os vivam. Respeito implica também em condescendência, atenção, ajuda, amparo, carinho, amizade, solidariedade. Como toda caridade, o respeito nas relações humanas demanda a virtude da paciência. A caridade da vida cotidiana engloba o conhecimento e o esclarecimento que não se engaveta para um momento oportuno, mas ao contrário, deve se fazer presente em todos os momentos da encarnação, na prática diária e variada em seus múltiplos aspectos. Albert Camus faz um comentário bastante interessante sobre a questão da agressão no comportamento humano – criticamente e com razão, afirma que muitos psicólogos defendem que o homem tem a necessidade “inata” de agredir, e que ela deve ser respeitada. O autor espiritual, discordando dessa posição, então, indaga: “Mas, como respeitar o desrespeito” ?
Na verdade, do ponto de vista da psicologia, simplesmente tentar reprimir a agressividade, sem qualquer tentativa de clarificação sobre o significado de tal comportamento, pode trazer resultados até piores, como por exemplo, doenças psicossomáticas (ou seja, distúrbios emocionais da mente sobre o corpo, como dores e estresse), descontrole emocional (incluindo comportamentos agressivos descontrolados), etc. Mas como afirmou Camus, não se trata, porém, de simplesmente “respeitar” essa hipotética “necessidade humana” de agredir. Para vencermos os nossos impulsos agressivos, torna-se necessário a revisão de nossos valores ético-morais, através da Reforma Íntima, essa calcada em um processo particular de desenvolvimento pessoal baseado no autoconhecimento.
Quando uma pessoa agride ao outro, ela está a agredir a si própria também, pois em termos cósmicos todos fazemos parte de um Grande Todo que é a Unidade do Universo. Essa consciência e esse esclarecimento – comum a seres altamente evoluídos como Gandhi, Chico Xavier, Dalai Lama, e outros – é presente entre aqueles que “naturalmente” e sem qualquer esforço, não agridem em nenhuma circunstância. No estágio que a humanidade hoje se encontra, um tal estado evolutivo de consciência para ser alcançado, implica na necessidade de vencermos a nós mesmos, pela firme decisão de participarmos ativamente do próprio Universo.
Do ponto de vista ético e social, para tanto torna-se necessário o desenvolvimento da filantropia, ou seja, do amor à humanidade. Sabemos pelo mandamento maior, ensinado por Jesus, que amar ao próximo é amar a Deus, e vice versa.
Assim, a filantropia, a ação e a consciência social, se traduz na consciência e no amor em Deus. Por sua vez, a agressão ao próximo, se traduz pela agressão ao Pai Maior. Segundo esse raciocínio, é muito triste pensarmos o quanto nós cotidianamente agredimos ao nosso Pai Celestial, todas as vezes que agredimos os nossos irmãos da Terra. Mas, torna-se consolador sabermos que o nosso Deus de Amor, com sua infinita compreensão e bondade, sempre está disponível para nos perdoar, oferecendo-nos novas chances de adentrarmos em seu caminho construtivo para o Bem e para a Felicidade.
Algumas vezes precisamos suportar as consequências de nossos próprios erros, para aprendermos essa Lição Universal – essa é a Lei de Ação e Reação, que não é um castigo divino, como alguns pensam, mas sim uma sensibilização existencial para que o Espírito se auto-organize para a evolução progressiva do Universo.
Nesse contexto, como diria o psicólogo humanista Carl Rogers, a “aceitação integral positiva do outro”, deve incluir a aceitação das suas deficiências, e o amparo de suas conquistas, sem as exigências de tempo impostas pela nossa vontade de mudar o outro, mas sim pelo próprio ritmo do irmão em evolução. Segundo Camus, no momento em que todos se virem como seres imperfeitos, mas em evolução e, portanto, mudarem seus propósitos de crítica para compreensão e conquistas, de violência paraconhecimento, de obrigatoriedade para possibilidade, então terão encontrado o maior dos elos da corrente da Paz Mundial.
Quanto à renúncia às vontades, essa deve ocorrer sem que o ser perca a essência de si próprio, sem anular-se, sem tornar a renúncia uma atividade covarde e calculista.
A renúncia, como parte do respeito, na caridade da vida cotidiana, é aquela que mantém viva a personalidade, mas que, exatamente por isso, se impõe e não exige. É a renúncia que engrandece o indivíduo por indicar o padrão de conquistas do mesmo, sobre o próprio egoísmo. Renunciar a fatos por amor ou caridade, que fique bem claro, não significa renunciar a si mesmo, mas sim que os fatos e situações já não dominam a criatura.
Por fim, falemos do perdão automático. Na caridade da vida cotidiana, o perdão é a libertação do indivíduo de si mesmo, mobilizando energias que alteram o comportamento e o ritmo metabólico do ser. Perdoar é voltar à sintonia universal, abalada por um momento ou situação desarmônica. Mas para isso se faz necessário o cultivo do maior poder presente do universo – o Amor. Como afirma o psicólogo cristão-existencialista Rollo May, é impossível conhecer-se outra pessoa sem que a amemos, no sentido mais amplo da palavra. Mas, essa situação significa que ambas as pessoas serão transformadas pela própria identificação resultante do amor. O amor – segundo Rollo May – possui uma força psicológica fabulosa. É a força mais poderosa disponível no campo da influenciação e transformação da personalidade.
Assim - voltando ao espírito Albert Camus - sugere ele o seguinte: “... pensem sobre a renúncia nas relações humanas e pensem que as criaturas são parte essencial de um Universo de Amor e que quando todos exprimirem realmente em sua potencialidade esse Amor não haverá necessidade de renúncia”.
Referências Bibliográficas
Kardec, A. (1863). O Evangelho segundo o Espiritismo. São Paulo: Instituto de
difusão Espírita, 1978. (tradução de Salvador Getile).
Camus, Albert (Autor Espiritual). Pensamentos sobre o Ser. Matão: Casa Editora O
Clarim, 1995.
May, Rollo. A arte do aconselhamento psicológico. Petrópolis: Vozes, 1982.
Adalberto Ricardo Pessoa
Psicólogo Clínico e Analista Junguiano formado pela USP
Membro da Associação Brasileira de Psicólogos Espíritas (ABRAPE)