Muito
raro observar-se temperamento tão apaixonado, quanto o de Emiliano Jardim.
No fundo, criatura generosa e sincera, mas as noções materialistas estragavam-lhe os pensamentos. Debalde cooperavam os amigos em renovar-lhe as ideias. O rapaz reportava-se a umas tantas teorias de negação, e a moléstia espiritual prosseguia do mesmo jeito. O casamento, realizado entre pompas familiares, em nada melhorara a situação; quando, porém, Emiliano experimentou a primeira dor da paternidade, ao ver o filho arrebatado pela morte, esse golpe profundo lhe abalou o espírito personalista.
No fundo, criatura generosa e sincera, mas as noções materialistas estragavam-lhe os pensamentos. Debalde cooperavam os amigos em renovar-lhe as ideias. O rapaz reportava-se a umas tantas teorias de negação, e a moléstia espiritual prosseguia do mesmo jeito. O casamento, realizado entre pompas familiares, em nada melhorara a situação; quando, porém, Emiliano experimentou a primeira dor da paternidade, ao ver o filho arrebatado pela morte, esse golpe profundo lhe abalou o espírito personalista.
Justamente
por essa época, generoso padre meteu-lhe nas mãos um livro de consolação religiosa,
à guisa de socorro.
Em
semelhante fase do caminho, o contato com os ensinamentos de Jesus lhe encheu a
alma de serena doçura. Estava deslumbrado. Como não compreendera antes a beleza
da fé? Fez-se católico, sob aplausos gerais. Os afeiçoados se entreolhavam satisfeitos.
Emiliano,
contudo, embora seduzido pelas verdades luminosas do Mestre, trazia a sua lição
através da vida, como lhe acontecera ao tempo dos antigos postulados
negativistas.
Acreditando
servir ao ideal divino do Evangelho, terçava armas cruéis contra todos os que entendiam
Jesus por prismas diferentes. Acusava os protestantes, malsinava os espíritas.
Os anos, porém, correram na sabedoria
silenciosa do tempo.
Ralado
pelas desilusões de todo homem que procura a felicidade longe da redenção de si
mesmo, o nosso amigo, certo dia, passou-se de armas e bagagens para o
Protestantismo.
Entretanto,
por mais que se esforçassem os companheiros, Emiliano não conseguia realizar a
visão interna do Cristo, como Divino Amigo de cada instante, através de seus
imperecíveis ensinamentos.
Tornou-se
anticlerical violento e rude. Esquecera todos os bens que a Igreja Católica lhe
proporcionara, para recordar apenas suas deficiências, visíveis na imperfeição
da criatura.
Alguns
amigos menos vigilantes o felicitavam pelo desassombro; todavia, os mais experimentados
reconheciam que o novo crente mudara a expressão religiosa exterior, mas não
entregara o coração ao Cristo.
Depois
de longa luta, Emiliano sente-se insatisfeito e ingressa nos arraiais
espiritistas.
Emiliano,
qual sucede à maioria dos crentes, admite a verdade, mas não dispensa os benefícios
imediatos; dedica-se a Jesus, anseia por vê-lo nos outros homens, antes de
senti-Lo em si próprio. Sua atividade geral transtorna-se. Enfrenta de armas na
mão todos os companheiros antigos: Supõe que deve levar a defesa da nova
doutrina ao extremo. A bondade dos guias espirituais, que se comunicam nas
reuniões, ele a toma por elogio às suas atitudes.
Como,
porém, a justiça esclarecida é sempre um credor generoso, que somente reclama pagamento
depois de observar o devedor em condições de resgatar os antigos débitos, Emiliano,
na posse de numerosos conhecimentos e bafejado de tantas exortações divinas, penetrou
no caminho do resgate das velhas dívidas. Tempos difíceis surgiram-lhe no horizonte
individual. Enquanto se esforçava para remover alguns obstáculos, outras montanhas
de dificuldade apareciam, inesperadamente. A moléstia, a escassez de recursos e
a ironia dos ingratos visitaram-lhe a casa honesta. A princípio resignado e
forte, acabou desesperando-se. Dizia-se abandonado pelos amigos espirituais e
acusava os médiuns, cheios de obrigações sagradas, tão-só porque não podiam
permanecer em longas concentrações, para solução dos seus casos pessoais.
Sentia-se perseguido por maus Espíritos, e, na sua inconformação, magoava
companheiros respeitáveis.
A
dor, todavia, não interrompeu sua função purificadora. Depois de penosa
enfermidade, sua velha genitora partiu para a vida espiritual em condições
amargas. Não passou muito tempo e a esposa, perturbada nas faculdades mentais
durante três anos, seguia o mesmo caminho.
Em
seguida, os dois filhos que criara, com excessos de carinho, se voltaram contra
o coração
paternal, com injustas acusações. Ao ensejo da calúnia, os últimos companheiros
fugiram. O nosso amigo, outrora tão discutidor e tão violento, experimentou
desânimo invencível. Nunca mais foi visto em rodas doutrinárias, nas tertúlias
da inteligência; comumente era encontrado, como vagabundo vulgar, escondendo
lágrimas furtivas. Numa radiosa véspera de Natal, em que o ambiente festivo lhe
falava da ventura destruída ao coração, Emiliano chorou mais que de costume e
resolveu pôr termo à existência.
À
noite, encaminhou-se para a praia, alimentando o sinistro desígnio. Antes,
porém, de consumar
o erro extremo, pensou naquele Jesus que restituíra a vista aos cegos, que
curara os leprosos, que amara os pobres e os desvalidos. Tais lembranças lhe
nevoaram os olhos de pranto doloroso, modificando-lhe as disposições mais
íntimas.
Foi
aí, nessa hora amargurada em que o mísero se dispunha a agravar as próprias angústias,
que uma voz suave se fez ouvir no recôndito de seu espírito:
-
Emiliano, há quanto tempo eu buscava encontrar-te; mas sempre me chamavas
através dos outros, sem jamais procurar-me em ti mesmo! Dá-me a tua dor,
reclina a cabeça cansada sobre o meu coração!... Muitas vezes, o meu poder
opera na fraqueza humana.
Raramente
meus discípulos gozam o encontro divino, fora das câmaras do sofrimento.
Quase
sempre é necessário que percam tudo a fim de me acharem em si mesmos. Tenho um
santuário em cada coração da Terra; mas o homem enche esse templo divino de
detritos, ou levanta muralhas de incompreensão entre o seu trabalho e a minha
influência... Nessas circunstâncias, em vão me procuram. . .
Emiliano
estava inebriado. Não ouvia propriamente uma voz idêntica à do mundo, mas experimentava
o coração tomado por poderosa vibração, sentindo que as palavras lhe chegavam ao íntimo como aragem celestial.
Volta ao esforço diário e não te esqueças que estarei com os meus discípulos sinceros até ao fim
dos séculos! Acaso poderias admitir que permaneço em beatitude inerte, quando
meu amigos se dilaceram pela vitória de minha causa? Não posso estacionar em
vãs disputas, nem nas estéreis lamentações, porque necessitamos cuidar do
amoroso esclarecimento das almas. É por isso que estou, mais frequentemente,
onde estejam os corações quebrantados e os que já tenham 'compreendido a
grandeza do espírito de serviço. Não te rebeles contra o sofrimento que
purifica, aprende a deixar os bonecos a quantos ainda não puderam atravessar as
fronteiras da infância. Não analises nunca, sem amar. Lembra-te de que, quando
criticares teu irmão, também eu sou criticado. Ainda não terminei minha obra
terrestre, Emiliano! Ajuda-me, compreendendo a grandeza do seu objetivo e
entendendo a fragilidade dos teus irmãos. Dá o bem pelo mal, perdoa sempre!
Volta ao teu esforço! Em qualquer posto de trabalho honesto poderás ouvir minha
voz, desde que me procures no coração!...
Emiliano
Jardim sentiu que as lágrimas agora eram de júbilo e reconhecimento.
Em
breves instantes, experimentava radical transformação.
À
sua frente via a imensidade do céu e a imensidade do oceano, sentindo-se como
num mundo
em que o Cristo houvera nascido. Recordou que não tinha senão escórias de
miséria para ofertar a Jesus, e que seus sentimentos rudes simbolizavam aqueles
animais que foram as primeiras visitas da manjedoura singela.
Deslumbrado,
endereçou um pensamento de paz a todos os companheiros do pretérito e começou a
compreender que cada um permanecia em sua posição de trabalho, na tarefa que o
Senhor lhe designara. Poderosa vibração de amor ligava-o à Criação inteira. Não
se torturava em raciocínios. Compreendia e chorava de júbilo. Levantou-se,
enxugou as lágrimas e retomou o caminho da cidade barulhenta.
O
nosso amigo conhecia de longos anos o Salvador, mas só agora encontrara o
Mestre.
Emiliano Jardim regressou, renovado, ao labor
do Evangelho, depois do Natal diferente.
(Reportagens de Além-Túmulo, Humberto de
Campos, psicografia de Francisco Cândido Xavier)
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